Vegana
Um conto.
— Vidas animais também importam, sabia?
Não era bem o melhor jeito de ser abordado ao parar em uma churrascaria de beira de estrada. De todos os lugares que ele podia imaginar uma menina com o cabelo verde ostentando uma placa com uma caveira de vaca dentro de um coração, definitivamente não era aquele o mais provável.
A churrascaria parecia vazia. Tateou os bolsos apenas para lembrar que o celular tinha ficado no carro, sem bateria. Estava torcendo para encontrar um posto de gasolina onde pudesse comprar um daqueles cabos genéricos e plugar no acendedor, só que ainda não tinha passado por nenhum. Mas não devia passar das 11h da manhã, o movimento pesado só começaria dali uma hora, talvez. Ou nem isso, considerando a quantidade de carros que tinha ultrapassado seu Ford velho pela rodovia. Pelo visto, não tinha muito movimento por ali, não naquele desvio em particular. O estacionamento estava vazio.
— Sim, claro. Mas eu estou com fome. Prometo ficar só na alface se as saladas não estiverem murchas. — Disse ele sem paciência, apenas para se livrar do incômodo.
— Bem, a maionese é boa.
— Como você sabe?
— A churrascaria é da minha família. — Ela respondeu, dando de ombros.
— E você costuma ficar aqui fora fazendo propaganda negativa dos negócios da família? — Ele parou com a mão na porta vai-e-vem e a encarou.
— Não tenho culpa se eles comem animais aqui dentro. De tudo que é tipo.
— Mas você não?
— Não. Nada de animais. — Ela apontou para a placa, como se ele fosse algum tipo de idiota. — Eu fico tentando convencê-los, mas sabe como é...
— Bem, é uma atitude louvável, mas como eu disse, estou morrendo de fome.
— Ei, você não é aquele escritor? Aquele que escreveu Teoria da Fúria?
Ele estancou. Com seus brincos de plástico em formato de nuvem, a roupa e os cabelos em cores pastéis e a placa esquisita, também era a última pessoa que ele imaginaria que fosse pegar um exemplar do seu último livro e folhear tranquilamente sentada em uma poltrona confortável.
— Sou sim. — Ele respondeu. — Você conhece?
— Claro. É um dos meus preferidos.
Ele a olhou com espanto ainda maior. A garota devia ter qualquer coisa entre dezesseis e dezenove anos. Devia estar escutando funk nos fones de ouvido, certamente não lendo um livro que a crítica tinha considerado “esteticamente brutal e desmesuradamente violento”.
— Ah. Que... bom?
E ainda assim, não havia qualquer traço de ironia no semblante da garota.
— Eu gosto particularmente de como você reduz os personagens a... coisas.
Ele a olhava como um cachorrinho que não tinha entendido o comando do dono, o rosto inclinado, sem saber como reagir.
— Acho que tenho um exemplar no carro. Você autografa para mim? Eu achei genial, de verdade.
Ele quis resmungar em impaciência, mas se conteve.
Seu Teoria da Fúria tinha ido mal nas vendas. Talvez por conta das críticas. Ele costumava escrever sobre violência, caramba, tinha construído uma carreira inteira em cima disso, mas pelo visto tinha ultrapassado os limites com o último, que não tinha sido bem aceito, boicotado na internet e considerado um trabalho apelativo até mesmo pelos seus leitores mais fiéis. Ele imaginava que tinha escrito algo original, cru, sem as afetações de sempre, uma extrapolação do próprio estilo. Mas aparentemente, se fosse contar pelo número de vendas, até um veterano como ele podia se enganar.
— Claro. — Ele concordou. — Estava mesmo com fome, mas não o suficiente para rejeitar um afago no ego. É verdade que tinha dirigido bastante a caminho de uma leitura, especialmente porque tinha se desviado da rota e se perdido em meio as estradas rurais até a cidadezinha. O maldito telefone o tinha deixado na mão e, sem GPS, teve que se guiar unicamente pelas placas poeirentas no caminho. Tinham se passado quase quarenta minutos até encontrar asfalto novamente, e a fome já beliscava sua barriga com garras afiadas. Ainda assim...
— O carro está por aqui. — Ela saiu sem olhar para trás, como se estivesse certa de que ele fosse segui-la.
O que, é claro, ela estava. Há algo sobre escritores. São criaturas vaidosas por natureza. Ele se virou e começou a ir atrás da garota, que contornava o restaurante pelo lado esquerdo. Pela vidraça, ele via apenas um garçom entediado dentro da churrascaria. Talvez fosse melhor esperar um pouco de qualquer forma, ele nem gostava de carne malpassada e àquela hora a picanha ainda devia estar sangrando.
A garota tinha um Clio, tão antigo quanto seu Ford, a julgar pela espessa camada de poeira que se grudava a ele como pele velha de cobra. Ela tateou os bolsos procurando a chave enquanto o vento espiralava na rodovia deserta. O cheiro de churrasco subia pela chaminé do restaurante, fazendo sua boca salivar em antecipação.
Ela abriu o porta-malas do carro e ele sentiu uma tontura. Provavelmente a fome.
Não, não era isso. Era uma coisa estranha, como se seu sexto sentido repentinamente apitasse, fazendo com que ele sentisse vontade de correr para longe dali.
— Isso aqui está uma bagunça. — Ela disse, de costas para ele, ocultando o interior do porta-malas.
Ele sentiu os cabelos na nuca se eriçarem. Dava para ver uma mancha marrom avermelhada na calça jeans dela, enquanto ela remexia nas bugigangas lá dentro. Uma mancha que lembrava irritantemente a sangue. Que besteira. Se ele tivesse mesmo um sexto sentido, ele o teria avisado para não apostar suas fichas no Teoria da Fúria.
Para alguém que ganhava a vida escrevendo sobre assassinatos, talvez ele estivesse ficando um pouco paranoico.
— Aqui. — Ela falou, virando-se rapidamente. Ele deu um passo para trás, assustado.
A garota deu uma risadinha.
— O livro...
Ele soltou um suspiro — desde quando estava prendendo a respiração? — e aceitou o exemplar gasto de Teoria da Fúria que ela estendia na sua direção. O vermelho escuro da capa do livro era do mesmo tom da mancha na calça da garota.
— Claro. Tem uma caneta? — Ele perguntou, desejando já estar dentro da churrascaria mordiscando um pão de alho quentinho.
— Sabe, você não deveria mesmo comer animais.
Ele deixou o livro cair quando o cutelo acertou sua mão com força. O sangue pingou sobre a capa e, um instante depois, a ponta do mindinho caiu com um ploft nas pedrinhas ao lado dele.
Ele soltou um grito de dor atrasado. A garota era completamente maluca.
— Opa. Que desastrada. — Ela deu uma risadinha e fechou a cara logo em seguida, balançando o cutelo como uma raquete de tênis, como se avaliasse qual seria o próximo golpe.
Ele se virou para correr a tempo de evitar descobrir a resposta. A dor era insuportável. Seu carro estava longe demais para ele alcançá-lo sem que ela o alcançasse primeiro e ele se deu conta de que só havia uma alternativa. Derrapou na areia, respingando sangue e se jogou contra a porta vai-e-vem.
A churrascaria estava vazia agora. O garçom entediado, na falta de clientes, provavelmente estava na cozinha ou lá atrás, fumando um cigarro. Ele passou o bufê correndo até o caixa nos fundos do salão. Precisava de um telefone. Gritou por alguém quando a garota entrou na churrascaria. Com as costas contra a parede, ele tateou o caixa em busca de um telefone. Nada. O balcão estava vazio, a tela do computador apagada.
Ela veio caminhando lentamente, o cutelo para lá e para cá como uma batuta de maestro. Tinha um semblante esquisito. Quase como se estivesse triste.
— Eu disse. Eles comem animais aqui.
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Muito fluido e visual 👏🏻👏🏻
Gostei do nível de tensão que você produziu no texto e te confesso que fiquei com medo de encontrar essa garota leitora por aí.